terça-feira, 13 de janeiro de 2009

UMA CHANCE PARA AS ‘BELAS ARTES’ ALÉM DAS NOMEAÇÕES: UM ELOGIO AO TERRORISMO POÉTICO DE RAFAEL AUGUSTAITIZ.

Aldo Victorio [1] UERJGustavo Coelho [2] UERJ


Tomando como ponto de partida a condição inerentemente estética inseparável do acontecimento humano, em especial, de toda a produção humana, uma urgente questão merece ser nietzschianamente proposta: quais os pressupostos que autorizam, ou melhor, naturalizam as invencionices dos processos de julgamento e categorização tão necessários à sobrevivência de uma lógica que, através da recusa, constrói suas sutis e marcantes distinções entre, a grosso modo, o que pode ser “gosto culto” e “gosto vulgar”? E neste sentido, é mais que evidente a simpatia e a confortabilidade da Arte em sua contínua e anacrônica inclinação, ou melhor, quase total tendência em favor da primeira categoria. Sendo assim, a meu ver, é justamente sobre “vontade de distinção” que se sustenta este projeto “porta-voz” da oficialidade da Arte. Em detrimento de uma série de outras produções, outras estéticas, julgadas em seu proveito como imorais, banais, bárbaras, ou ainda vulgarmente populares; esta Arte trama suas redes de hierarquizações amplamente necessárias, como pilares para seu ilusório estado de planagem por sobre a vida. Em última instância, a Arte é inerentemente dependente direta desta distância por ela mesma sagazmente arquitetada, ou melhor, da sua aparência superior auto-justificada a fim de uma sobrevivência ingênua no conforto do inatingível. É justamente neste semblante confortável, que a instituição Arte anuncia, sem querer e sem se dar conta, o seu próprio aspecto frágil. Ou melhor, sem perceber, o próprio cerne da sua ação já é a prova da falência de um projeto legitimador de feitos, uma vez que os mesmos, justamente por serem humanos, não necessitam para si, nenhum saber transcendental capaz de julgá-los. Em outras palavras, no próprio momento em que ela justifica sobre si mesma uma auto-autoridade licenciada a julgar, fica evidente a um olhar mais atento, seu inescapável teor falsificador.Na nossa contemporaneidade, o fenômeno da metrópole surge, a meu ver, como um manancial de produções estéticas em fricção indisciplinada e desregrada, em outras palavras, torna-se um terreno fervilhante para evidenciar o aspecto polifônico do acontecimento vida em sua completude, ou melhor, para além do bem e do mal. Desta maneira, a ebulição de produções acontecendo fora dos certames do sítio da Arte gritam sua sobrevivência, não querendo nem saber de legitimidades, não perdoando nem mesmo suas grades, seus muros, nem suas marquises. De todo modo, a Arte, ou melhor, as Belas-Artes, longe de encarar este desafio de frente, peidam em prol de uma essência, e perdem, a cada novo distanciamento, a chance de abandonar seus viciados discursos, a chance de finalmente conviver entre o desmantelado, o imperfeito e a estética.Entendida a estética como emanação fundante da condição humana, certamente, essa energia e imanência, que fez a invenção da palavra e faz a permanente fabricação dos enunciados, não poderá ser reduzida ou exilada a este ou aquele regime de verdades e sistema normativo, seja de qualquer ‘arte’ vinculada a qualquer ‘cultura’, arte ou a literatura. Pois, a palavra - criação humana maior, que há alguns milhares de anos, entre tantos caminhos, nos possibilitou a culpa que nos impede chafurdarmos no profundo pântano das pulsões - quer urrar, quer romper as prisões institucionais que sustentam a idéia da civilidade assim como as adequações aos seus sistemas. A palavra rompe suas codificações, reinventa-se e aos seus registros, ultrapassa a literatura que a libertara e transpassa as artes que a incorporara. A palavra foge da boca humana e reverbera da goela da cidade.A cidade, que não deu conta do seu projeto de acolhimento, proteção e conforto de seus habitantes, é um precioso exemplo das frustrações da civilidade. Entre os seus muros, por trás de cada concentração de poder e validações simbólicas, insinua-se o desespero de uns e de outros pelo preenchimento impossível do fundo sem fundo humano que se reflete nos vazios nem sempre visíveis da cidade. E essa busca pela organização do aparente caos é o que, a um só tempo, nos humaniza e nos revela inumanizáveis... Desse processo surgem os saberes, belezas e suas hierarquizações. E sobre tais desesperos ocultados, predominam e reluzem as práticas burguesas, as éticas cristãs e as morais civilizatórias ainda hegemônicas na cidade.A arte a serviço da mecânica capitalista, que a criou e mantém, alimenta, a seu modo, o jogo das localizações sociais, na medida em que respalda a instituição dos valores estéticos circulantes. Assim, a arte corroborara, com o que guarda e concentra de energia estética, com a mágica e a imagética da institucionalização dos sistemas culturais. Dá cara e coroa à academia, ao poder instituído e demais organizações que estruturam a cidade. Mas, não lhe garante uma alma una e controlável. Inexoravelmente partidária, a arte frauda a legitimidade de belezas e as suas territorializações. Como criação e instância legalizada, a arte colabora ativamente com as diagramações sociais inseparáveis da perversidade da cidade.Contudo, a despeito do poderoso jogo de cena que edita e publica toneladas de verdades e seriedades, a pulsão estética, aquela velha e ativa energia que inventou a palavra e a ação dita humana, não lê nem respeita o que lhe desautoriza e tenta ordenar. Invade nômade, brincalhona, inoportuna e indigesta as cenas da cidade. Já que esta última ludibriou seu próprio projeto e manual de verdade, já que no lugar do abrigo impõe a deserção, não tem como impedir sua transmutação em uma espécie de palimpsesto imenso, livro aberto a qualquer escritura... livro vazio de verdades fixas e pleno de devir. A cidade madrasta dos rebeldes vira corpo das cicatrizes estéticas dos embates das suas escolhas. Insone, delirante, emerge do limbo das contradições como tela aberta aos que abandonou.É, portanto, como tática de impacto que, lançando mão de um, ao menos aparente domínio articulado de uma gramática legitimada oficialmente, habitaremos com ares de vírus camuflados, ambientes previamente inculcados como naturalmente confortáveis. Ocupando tais lugares de discurso, buscamos a promoção de uma auto-denúncia do arbitrarismo simbolicamente violento que ousa auto-distinguir uma espécie humana autorizada a categorizar em seu proveito, quais os feitos humanos passíveis de contemplação, ou melhor, mais adequados ao sono confortável da cidade que promete a segurança. Em outras palavras, às que mesmo inodoras, exalam pretensiosos perfumes civilizados que, por só ainda sobreviverem graças a um secular projeto baseado em recusas, sustentam sua simpatia “tão artística”, “tão humanizada”. De todo modo, nada dessa pretensão tem sucesso de dimensões maiores que de um bairro, ou melhor, de um condomínio, ou de um pequeno ateliê ou ainda em menor escala, de uma academia. Qualquer mínima vivência desprotegida da cidade, qualquer primeira vista do acontecimento estético “metrópole”, prova tais limites territoriais, e em última instância denuncia a pretensão à naturalidade, própria de qualquer estetismo que, em sua irrelevante e óbvia minoria se intitulam “mais bem capacitados para discernir o belo”.De todo modo, o mau-cheiro da cidade é tão pulsante, tão indisciplinadamente encantador que qualquer mínima ação em favor de seu desprezo, ou ainda de sua aniquilação, só alimentará com novos temas, a ironia sagaz do arteiro que vive na pegada, “nada querendo saber sobre legitimações”. E é nisso que mora sua potência incontrolável. De todo modo, mesmo com todo este manancial de possíveis reavivamentos na contemporaneidade, a Arte ainda cisma, talvez até como um instinto de conservação, manter seus pilares do distanciamento, da distinção, de seu aspecto mascarado de superior. E assim, tece suas simbologias, suas maneiras de fazer como instrumentos para sua auto-segurança risível. Sobre este instinto de proteção, de assepsia, ou melhor, de distinção:


...compreende-se que a maneira de usar bens simbólicos e, em particular, daqueles que são considerados como os atributos da excelência, constitui um dos marcadores privilegiados da ‘classe’, ao mesmo tempo que o instrumento por excelência das estratégias de distinção, ou seja, na linguagem de Proust, da ‘arte infinitamente variada de marcar distâncias’. (BOURDIEU, 2007, p. 65)

Neste sentido, enquanto as outras lógicas, as outras estéticas, ou melhor, a imensa maioria delas continuar percorrendo e habitando ambientes periferizados, ou seja, que não impliquem qualquer desconforto ao legítimo, cada qual viverá independente do outro, sem nem querer saber do outro. É neste sentido que, mais uma vez, a metrópole emerge como força propagadora de novos encontros, muito possivelmente dissonantes. E a partir daí, no alto de suas vaidades, o legítimo se auto-prescreve a necessidade de pronunciamento, afinal, carrega sobre si a responsabilidade de porta-voz da humanidade, ou ainda mais pretensioso, dos feitos, das obragens humanas. Assim, as forças que na centrifuga da cidade não se aquietam nos seus lugares de destino prescritos, encontram, às vezes por acaso, às vezes taticamente, locais cuja oficialidade torna-se tema risível e leve, ou seja, como de fato são quando desvestidos de seus constituintes invólucros falsificadores, prazerosos somente aos que dele se impulsionam para cima. E quando há este encontro, refestela-se o poder, justificando assim, contra as forças que saíram de seus “devidos lugares”, o trabalho viciado em nomeações – vândalos.
A cólera do credor lesado, da comunidade, manda-o de volta ao estado selvagem, [...] a comunidade o expulsa e contra ele já se pode cometer qualquer ato de hostilidade. (NIETZSCHE, 2007, p. 69)


O que nos levou à reflexão acima esboçada foi um importante evento ocorrido ao fim do semestre passado no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Um jovem formando apresentou como trabalho final de graduação uma técnica e linguagem expressiva que há muito pesquisa e pratica, conhecida popularmente como ‘pichação’. Rafael Augustaitiz, quando entrou na faculdade já era autor de muitas obras nesse tipo de linguagem. Em momento algum cogitou renunciar a sua linguagem de escolha e ao seu pertencimento cultural/estético, tendo, inclusive, durante o tempo que freqüentou a faculdade, ‘pichado’ inúmeras superfícies urbanas.Nada mais compreensível que a tensão entre a ortodoxia da instituição de ensino (ortodoxia mais que afirmada pela reação assustadoramente conservadora da própria ‘Belas Artes’ que, diga-se de passagem, não traiu seu nome...) e a postura e ação abusada do rapaz.A tensão apontada está justamente no embate, nas palavras de Boaventura de Souza Santos, entre a força reguladora e as energias emancipatórias. Rafael pichou paredes, divisórias, mobiliários e a arquitetura da faculdade. Não fosse uma instituição supostamente voltada para o ensino da arte, ele poderia tranquilamente ser aniquilado pelo sistema de crenças que cuidam da higiene da cidade como cenário estéril para os corpos e mentes disciplinados. Mas, a razão da presença e ação de Rafael era justamente o aventado sentido institucional: formar artistas, professores de artes, etc... Então, não seria fácil digerir Rafael e suas obras, afinal elas têm o tamanho da cidade de São Paulo, que cresce sem parar para todos os lados, sobretudo para aqueles que o ‘bom gosto’, a ‘racionalidade’, o ‘bom senso’ e a ‘boa educação’ não querem olhar... Não seria fácil, nem possível esconder Rafael e impedir que seu feito nos levasse a pensar sobre os sentidos desse ensino de arte, abreviador de qualquer investimento filosófico na análise dos trabalhos de seus alunos. Rafael nos impõe pensar sobre a gravidade do cenário educacional que ainda se vale, rápida e violentamente, dos constrangedores recursos capazes de alcançar o senso comum de uma classe média anestesiada, como tentativa de dar conta da interrogação que Rafael gravou indelevelmente nas paredes da ‘educação artística’.A tal ‘Belas Artes’ alheia, como o demonstra de forma inequívoca os gestos de seus dirigentes, a toda uma velha discussão sobre os sentidos e limites da produção estética, sobre outorgas e experiências, parece desconhecer a imensa produção contemporânea da arte outorgada e das manifestações estéticas desautorizadas, mas não menos interessantes aos grandes teóricos e intelectuais da Arte. Assim, outro aspecto a ser evitado, com a redução do instigante trabalho de Rafael, é o distanciamento daquela instituição ao que alimenta a pesquisa em artes na maior parte das instituições realmente devotadas ao seu estudo e ensino destituídos de pudores falsificantes, ou melhor, calmantes do que é friccional e fervilhante.Quem lida com a estética têm que ter corpo e o simples fato desta existência do corpo em seu estado dilatado, já empurra para longe qualquer necessidade de legitimação que possa prescrever uma alimentação da potência do acontecido. Sendo assim, talvez seja justamente a força de independência tão presente no trabalho do Rafael, o ingrediente que mais tenha causado os enjôos conhecidos nas reações já previsíveis de tais ‘Belas Artes’ que, sem medo de errar, tornaram-se, como todo reducionismo conservador, motivos de ironia para uma juventude que ao “nada querer saber” sobre isso, garante sua sapiência.Também sem medo de errar, plenas de convicção, sob suas crenças na civilidade de suas ações como indiscutíveis sustentadoras de suas só aparentes feições de saúde, tais ‘Belas Artes’, sem saber, esconderm o flagrante óbvio para um olhar sem tantos vícios, seu estado terminal. Rafael então surge como um equipamento de choque desfibrilador, uma chance de sobrevivência, ou melhor, de ressurreição fora das convicções restritivas para as ‘Belas Artes’ que, mesmo sem palavras, retoma suas nunca perdidas vaidades de ares superiores, planando por sobre os homens. Em suma, prefere, sem nem dar conta, perder esta chance.E nem precisava de tantas palavras bem articuladas, se bem que, como já falamos, para o jogo das aparências podemos utilizá-las como tática. Bastava ouvir em elevados decibéis a sensatez do desequilíbrio: em palavras do próprio Rafael: “Somos abusados? Que se foda! É um orgulho pra vocês eu estar dentro dessa podre faculdade. Não sou seu filhote, não preciso do seu aval. A arte hoje em dia é pra quem está na pegada. Para os bunda-moles ela morreu faz é tempo.”
Em simpatia com a idéia da totalidade da vida, a meu ver, tais ‘Belas Artes’ só se libertarão de seus invólucros constitutivos, na medida em que for se confortando com a idéia de infidelidade a verdades, a morais, ou seja, se confortar no trânsito do próprio fazer estético em seu aspecto completo, incluído aí as infidelidades aos valores. Em outras palavras, trafegando pelo desmantelado e pelo imperfeito sem seus ainda claros desejos de eliminação, ou melhor, de preservação de si. É exatamente neste sentido que Rafael é, ou deveria ser, se é que ainda não será, como ele, sabiamente declara, um orgulho não só para o Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, mas para a genérica ‘Belas Artes’ em si. Talvez ainda haja tempo.
“cada verdade pode permanecer tal justamente porque se modifica. Então, o sentido profundo de ser fiel a uma verdade é o de traí-la. Somente traindo a verdade permanece-se fiel a ela.” (CANEVACCI, 2001, p. 42)Os nômades nada esperam da cidadela atravessada e não a desejam ocupar. É apenas uma coincidência ela surgir no caminho vagabundo dos primeiros. Como chegaram, artistas em transe e trânsito permanente, partem sem se importar com o que é feito e com o que é pensado nos intestinos das ruínas intactas que apavoradas os rejeitam. Em seu fluxo e devir, com seus olhares delirantes e suas criações alegres e ferozes, os nômades, belas crianças, da cidadela triste e rancorosa, nem se aperceberam...Rafael é uma preciosa notícia!
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[1] Graduado em Gravura pela Escola de Belas Artes (UFRJ) e Licenciado em Educação Artística. Mestre e Doutor em Educação (ProPEd - UERJ). Professor adjunto do Instituto de Artes (UERJ). Contato: avictorio@gmail.com
[2] Bacharel em Comunicação Social (UERJ). Mestrando em Educação (ProPEd – UERJ). Contato: coelhoguga@gmail.com

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